A OBRA ARTÍSTICA DE CASTELAO E O COMPROMISSO COM A PÁTRIA GALEGA

1. Noções gerais sobre a arte da caricatura

Antes de chegarmos de forma efetiva ao estudo da obra artística de Castelao e do modo de como ela se relaciona com o nacionalismo galego, cumpre tecer algumas considerações que virão a enriquecer o nosso conhecimento da caricatura como instrumento de crítica política.
Termo de origem italiana (verbo caricare = carregar, colocar carga em), os antigos humoristas encontraram em caricatura a nomenclatura perfeita para a essência de um gênero que consistia no exagero de algum defeito e na busca do extravagante, sem, entretanto, usufruir as propostas normativas para conseguir o efeito desejado.
Bernardo Barros afirma a palavra caricatura como “um termo restritivo que abrange apenas o exercício do humorístico, este, por sua vez, se detém a observar os gestos, as atitudes e características pessoais, o que o faz ser diferente”. Este gênero é caracterizado pelo humor, pela sátira e pela paródia: o caricaturista permanece com os sentidos abertos para expressar o cotidiano de uma história de personagens que transcendem o social. Apesar de sua simplicidade, este meio de expressão permite transmitir uma rica fonte de simbologias sociais e culturais.
Por que a caricatura tem íntima relação com o tratamento das questões políticas? Na expectativa de esclarecimento desta questão, Oscar Muñoz afirma que o profissional da caricatura, após a análise dos personagens, procura fundamentalmente dialogar com as massas populares sobre as mazelas sociais ignoradas pelas autoridades. Este trabalho é realizado por meio de uma estética que impõe ao artista o dever de sintetizar as linhas empregadas na sua obra, além uma técnica cuja natureza revela-se bastante sensível.
Em um sentido geral, a caricatura caracteriza-se na deformação, uma vez que rompe com as regras do bom uso do desenho advogado pelas escolas artísticas tradicionais; tal pressuposto, porém, não evita outros caminhos para a expressão e a criatividade. Carlos Sojo aponta para uma sistematização deste tipo de arte conforme as suas finalidades e o meio técnico empregado e, fundamentado nesta proposta, estabelece diferenças entre as caricaturas política, habitual e de ilustração, cujos conceitos principais são os seguintes:
• Caricatura política: Sojo afirma que, em sua essência, trata-se de uma forma de aguilhoar e de tornar cômica a pomposidade de personagens e, ainda, revela-se como uma irreverente forma de expressão capaz de zombar pessoas de papel relevante no cenário político e social. Este tipo de manifestação tem seu lugar na sociedade desde os seus primórdios, haja vista a sua utilização contra o poderio de deuses gregos e egípcios e daqueles que encarnavam as suas prerrogativas, por exemplo. No que se refere à contemporaneidade, Sojo afirma existir duas correntes dentro da caricatura política: as chamadas caricaturas “tremendas”, que tem por característica uma denúncia firme e sem concessões e as caricaturas “palaciegas”, com propriedades sinuosas e espírito cortês.
• Caricatura habitual: é aquela que reflete a vida cotidiana: costumes, ofícios, defeitos e valores da mesma. Este tipo de caricatura seleciona as expressões próprias de um grupo social: destarte, são representadas cenas de vendedores, postos de venda, incidentes ocorrentes nas ruas, entre outros.
• Caricatura de ilustração: Neste caso, ao invés de estar inserido em um cartoon, se usa a caricatura como complemento de um texto informativo, comentando ou condenado as situações expressas no mesmo.

2. O estilo de Castelao

No que se refere à caricatura na Galícia, pode-se considerar Alfonso Castelao como a principal figura desta manifestação artística devido à qualidade, magnitude e repercussão de sua obra, além da influência que é estendida aos humoristas gráficos posteriores, servindo a estes como referencial para a realização de seus desenhos.
A obra artística de Alfonso Castelao tem por características fundamentais a condensação textual, a ilustração concebida a partir de umas linhas esquemáticas suficientemente caracterizadoras do personagem, a ausência de cor (que parece aumentar o drama das cenas representadas) e a presença do lirismo e da ternura. Esta última característica é a que mexe com o espectador que contempla a ilustração, provocando nele um ligeiro sorriso, nunca, porém, uma manifestação mais extrovertida, porque o contexto e as situações representadas incitam, na maioria dos casos, a compaixão pelos personagens representados. Neste sentido podemos considerar que Castelao reproduz a idéia de Mark Twain de que debaixo do humorismo há sempre um grande sentimento e por isso é necessário abordar o humor com uma profunda ternura para o ser humano que o protagoniza.

3. A representação do espaço social e cultural na obra de Castelao

Pode-se observar a partir da análise da obra de Castelao a capacidade de codificação de diversos fundamentos em que se constrói o imaginário de uma sociedade, revelando, deste modo, um grau extraordinário de conhecimento da psicologia do povo galego. Entretanto, a sua genialidade não encontra suas fronteiras finais neste ponto. Castelao é, antes de tudo, um pedagogo que faz a sua grandiosa obra se tornar de fácil leitura para o cidadão galego o qual, ao identificar-se naquelas linhas, resgata o orgulho pela sua pátria. Partindo então deste pressuposto identificaremos alguns pontos que estão ligados a Galícia de Castelao e fizeram do mesmo um clássico da cultura galega e também do galeguismo:
• Os espaços: Primeiramente, a Galícia aparece principalmente como uma área rural. São freqüentes os espaços campesinos, todavia aparecem também parques ou jardins em que falam personagens burgueses, apesar de aparecerem majoritariamente vinculados a espaços mais fechados, como, por exemplo, casas, cafés, cassinos etc. São poucas as paisagens de litoral e zonas portuárias e menor ainda as representações de espaços citadinos, embora algumas ilustrações mostram algumas ruas ou mercados e a obsessão de Castelao pela estátua de Montero Ríos na praça do Obradoiro.
• Os personagens: A figura mais freqüente consiste na temática de velhos conversando entre si, comentando ou se queixando de algo. Poucas vezes estes e outros personagens são representados atuando de outra forma: o que se mostra mais relevante é a capacidade deles de se expressar em palavras, poucas e deselegantes, mas de grande competência comunicativa.
Junto àqueles personagens, estão as crianças e as mulheres. No que se refere aos primeiros, estes são apresentados como integrantes das classes populares, já as mulheres têm os seus discursos pautados em temas como o casamento, a discriminação e as desigualdades (de idade, classe e língua, por exemplo). Finalmente, completa o panorama de personagens humanos um grupo sobre o qual Castelao lançará todo o seu discurso colérico: os burgueses e os caciques.
Outras figuras que são utilizadas por Castelao na sua obra são os animais, na tentativa de retomar uma tradição de fábulas e contos de caráter moral, clássicos na cultura galega. São dois os grupos que predominam: o primeiro constituído por gatos, ratos e cachorros enquanto que no outro grupo aparecem sapos, porcos, vacas, macacos, galos, papagaios e lobos. Estes animais aparecem dialogando entre si ou fazendo comentários sobre os seres humanos.
• Traços pertinentes aos personagens: A imagem da Galícia também se constrói pelos objetos que diferenciam os personagens. Um aspecto que chamaremos a atenção em primeiro lugar são os adornos de cabeça que aparecem nas ilustrações: Castelao, de forma engenhosa, utiliza-os na formação de signos que caracterizam as diferenças sociais.
Tal pressuposto é observado quando se contemplam as estampas representativas das classes formadas por personagens de cunho popular. Observamos, por exemplo, neste segmento social, o chapéu de abas largas entre os homens, enquanto que as crianças aparecem com boinas e as mulheres com panos enrolados na cabeça. O restante da indumentária se completa com os homens portando guarda-chuvas, enquanto que as crianças estão vestidas com remendos e trapos e, por fim, as mulheres em alguns casos aparecem portando cestas. O mais freqüente é que estejam calçados, porém um signo de maior indigência é o fato de se apresentarem descalços.
Os adornos de cabeça também se tornam signos quando acompanham as elites da sociedade, porém um tópico interessante é que em diversas ocasiões os burgueses não cobrem as suas cabeças, deixando transparecer a sua calvície ou penteados (sobretudo as mulheres). Os homens aparecem vestindo terno e portando relógio de bolso e, caso fumem, o gosto predominante é por charutos. As mulheres se apresentam com belos vestidos e penteados realizados em cabeleireiros.
• Temática: A temática abordada nas ilustrações de Castelao reflete fundamentalmente a vida pública da Espanha no início dos anos vinte. Existem alguns casos em que os temas são de difícil interpretação, pois fazem referência a acontecimentos ou personagens relativos àqueles anos; no entanto, pode-se perceber pelo menos três eixos temáticos diferenciados:
a) O âmbito da vida cotidiana, no qual aparece o trabalho, a miséria, a dificuldade para pagar os impostos, os casamentos, a emigração;
b) O sistema de dominação política, no qual aparecem com bastante freqüência as eleições, o valor dos votos, o papel e a função dos caciques, a distância dos políticos ante aos problemas da vida cotidiana, os problemas criados pelas leis e que afetam a população dominada;
c) A repreensão na época da ditadura de Primo de Rivera, período em que surgem prisões, torturas, denúncias e censura sobre as ideologias e as liberdades dos cidadãos.

4. A dialética das línguas faladas na Galícia na obra artística de Alfonso Castelao

Dentro do numeroso grupo de ilustrações de Castelao, um ponto a ser observado e que revela o compromisso do artista com a Galícia é o contato lingüístico entre o galego e o castelhano, contato este que dá origem à seguinte classificação:
• Desenhos que apresentam a nota de rodapé escrito em língua galega;
• Desenhos que apresentam a nota de rodapé escrito em língua castelhana;
• Desenhos que apresentam a nota de rodapé parte escrita em língua castelhana e parte em língua galega.
Neste último caso, a escolha de Castelao já reflete a realidade do contato de línguas. Em qualquer dos três casos, a perspectiva do artista é evidente: o fenômeno de contato entre o castelhano e o galego que se aprecia na Galícia é o de diglossia (caso em que há variantes lingüísticas hierarquizadas) e não de bilingüismo. Castelao mostra em suas ilustrações como o uso de um ou outro idioma supõe a diferença de classe, de nível cultural e de comportamento dos personagens. A identificação lingüística realizada por Castelao é a seguinte: falam galego os personagens que são caracterizados positivamente como, por exemplo, o lavrador pobre e honrado (símbolo da Galícia rural), enquanto que o castelhano é falado pelos caciques e as altas classes sociais que não mantêm nenhuma relação afetiva com o território galego, ou seja, personagens marcados negativamente pelo artista. Assim, através da aplicação das avaliações citadas anteriormente, Castelao inverte a situação de valorização do uso daquelas duas línguas ao fazer um uso maniqueísta das mesmas em sua obra: os personagens galegos são simpáticos e possuidores de bondade, enquanto que os que falam castelhano são desagradáveis e moralmente censuráveis por sua conduta.


     Caricatura de Castelao