Análise do livro "O Que É Isso, Companheiro", de Fernando Gabeira.

I – Introdução

O texto memorialístico é o resultado de um confronto entre os acontecimentos vividos no passado pelo narrador e o ponto de vista sobre estes acontecimentos que ele possui no momento em que escreve seu relato.

“O Que È Isso, Companheiro?” é o primeiro livro de memórias de Gabeira, e foi escrito quando este se encontrava ainda exilado. Durante este período Gabeira teria adquirido uma postura crítica diante da esquerda, adotando uma posição bastante próxima da “postura libertária” que se desenvolvia no Brasil, no sentido de que também para ele as relações pessoais que marcam a vida cotidiana deviam ser consideradas políticas, bem como não se poderia aceitar um processo de transformação social que mantivesse a situação de opressão vivida por grupos sociais específicos como as mulheres, os negros e os homossexuais.

Como veremos mais adiante, a perspectiva que marca o momento em que Gabeira escrevia o texto era a da formação de um movimento que articulasse todos os grupos sociais que se consideram oprimidos pelo capitalismo. “O Que È Isso, Companheiro?” exprime o lado “utópico” presente nas propostas libertárias, pois é a possibilidade de uma mediação entre diferentes grupos sociais na formação de um movimento social igualitário o que constrói a narrativa, que se refere ao passado de Gabeira como militante político no Brasil.

“O Que È Isso, Companheiro?” começa com Gabeira no Chile, correndo da polícia após o golpe de estado de Pinochet. Foi ali que teria surgido a idéia de um dia escrever um livro, contanto as suas experiências. Gabeira localiza o começo da sua trajetória de militante em 1968, quando entrou em contato com o movimento estudantil, e aderiu à Dissidência Comunista da Guanabara – um “racha” do Partido Comunista Brasileiro, que posteriormente viria a se constituir no Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Mas, para explicar essa adesão, Gabeira passa a falar do golpe de 64, e da incapacidade do Governo Goulart em resistir aos militares.

Nesse recuo até o golpe, ele narra o início da repressão policial contra as forças de oposição, e o clima de discussão que se instalou na esquerda, com o surgimento de críticas ao “pacifismo” do PCB, que redundaram em cisões, e na adoção, pelos dissidentes, da luta armada como via para a “Revolução Brasileira”.

Em seguida, Gabeira mostra como foi se aproximando do movimento estudantil, que ressurgiu após o golpe: as passeatas se davam na Av. Rio Branco, onde ficava a sede do Jornal do Brasil, no qual trabalhava e de cuja sacada acompanhava as manifestações. A aproximação com os estudantes é descrita como o encontro que “revolucionou a minha vida”. Gabeira aponta as manifestações ocorridas em 1968 como sendo “o lugar onde tudo começou”.

A partir disso, narra a sua adesão ao MR-8, a decretação do AI-5, e o início das ações armadas por parte dos grupos de esquerda. Descrevendo, também, a sua participação no seqüestro do embaixador norte-americano, que o obrigou a entrar – por motivos de segurança – na clandestinidade: ficou trancado – na “geladeira” – por vários meses, em apartamentos que não podia sair, comunicando-se apenas com pessoas autorizadas pela organização. Findo o prazo que esta acreditava ser necessário que Gabeira ficasse escondido, ele se desloca para São Paulo, a fim de entrar em contato com militantes operários.

Em São Paulo Gabeira foi preso, atingido por uma bala no estômago, ao tentar escapar da polícia. O livro descreve o período em que esteve preso, as torturas que sofreu ou presenciou, as audiências nos tribunais militares, os deslocamentos de uma prisão para outra. Ele acaba no momento em que – trocado pelo embaixador alemão seqüestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária – Gabeira está viajando de avião rumo à Argélia.

II – As características da narrativa

De acordo com David Arrigucci, “O Que È Isso, Companheiro?” acompanha a tendência de produção ficcional dos anos 70, que se voltou para uma “representação mimética da realidade histórica que temos vivido”. “O Que È Isso, Companheiro?” seria caracterizado por uma busca ao sentido do que foi vivido no passado, e que se manifesta no próprio titulo do livro: O Que È Isso, Companheiro?

Nessa busca ao sentido, há uma reconstrução da experiência vivida por Gabeira como militante guerrilheiro, que ultrapassa a singularidade, adquirindo uma dimensão coletiva. Em “O Que È Isso, Companheiro?” há uma intenção realista que se combina com uma utilização de procedimentos realistas. Ao contrário do que acontece na “poesia marginal”, a experiência não é algo que dispense as mediações. Os diferentes momentos da narrativa são articulados pela autocrítica da luta armada, que fornece uma perspectiva que situa as práticas singulares do indivíduo Gabeira no interior do momento histórico mais abrangente. Se Gabeira trabalha com mediações, isso significa, também, que ele não construiu um texto alegórico: não se pretende fazer com que o singular represente – seja uma alegoria – o universal. É através do seu pertencimento a um grupo social particular – o dos militantes do MR-8 – que Gabeira vincula o singular ao universal, produzindo uma narrativa particularizadora.

“O Que È Isso, Companheiro?” poderia ser enquadrado na categoria lukacsiana do realismo crítico: um realismo não naturalista, que não se volta para uma reprodução “fotográfica” – puramente descritiva – do real, pretendendo reconstruí-lo através do estabelecimento de mediações entre os seus diferentes níveis: o singular, o particular e o universal. Desse modo, os seus componentes literários podem ser vistos como uma manifestação do “projeto” que seria inerente a um texto memorialístico, que apontaria a necessidade da realização de uma articulação entre a identidade individual e o momento histórico.

III – O caráter “modelar” da narrativa

É a sua experiência enquanto militante guerrilheiro nos anos 60 que Gabeira pretende transmitir em “O Que È Isso, Companheiro?”.

Ele acompanha as críticas feitas pelos adeptos dos “movimentos libertários” àqueles que pretendem falar sobre grupos sociais sem ter compartilhado de suas experiências. Gabeira fala de um grupo social do qual fez parte, e fala de sua experiência pessoal, e não em nome dos outros.

A crítica se dirige às correntes da esquerda, que não compartilhariam da experiência vividas pelos setores populares, embora pretendam “falar por eles”. É o que podemos perceber quando Gabeira descreve o que aconteceu em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em 1968, quando da manifestação de protesto pela morte – em confronto com a polícia – do estudante secundarista Edson Luís. Gabeira afirma que nessa manifestação podiam ser detectadas duas línguas diferentes:

“Completamente perdidos naquele enredo estavam as pessoas que viram a agitação na assembléia e se aproximavam para dar sua solidariedade. Muitas chegaram a fazer também o seu pequeno discurso e apresentavam sua perplexidade, inventariavam causas as mais diferentes, apontavam os caminhos os mais diversos. Se tivéssemos o poder de voltar atrás e recolher todos os discursos da época, talvez pudéssemos perceber ali que estavam sendo faladas duas línguas distintas. Uma, a dos partidos que sabiam o que fazer, que tinham sua tática e sua estratégia, e analisavam o episodio dentro da sua lógica mais geral. A outra das pessoas que iam passando, que não dispunham de nenhum programa global para salvar nenhum país, mas que se sentiam sufocadas por mil problemas cotidianos, pelo medo, pela pobreza; uma gente cheia de vida, capaz de subir nas escadas da Assembléia e dizer que assim não dava mais, que o preço dos aluguéis estava muito alto, que o custo de vida tinha de parar de subir”.

Se considerarmos esse trecho de “O Que È Isso, Companheiro?” sob o prisma da relação entre a experiência vivida e a produção dos significados, poderemos perceber que a esquerda falaria uma língua abstrata, alheia à experiência concreta, pois falaria do geral em se referir ao singular; enquanto os setores oprimidos falariam uma língua extremamente colada às suas experiências cotidianas, e que, portanto, seria uma língua presa à singularidade, marcada pela diversidade e pela perplexidade diante do geral: estaria configurada uma situação onde haveria “duas línguas se falando, nenhuma entendendo a outra”.

Gabeira estaria pretendendo desempenhar o papel de “tradutor simultâneo” das línguas diferentes faladas pelos setores oprimidos e pelas correntes de esquerda, através do estabelecimento de mediações entre as singularidades e o universal. A característica particularizadora da narrativa de “O Que È Isso, Companheiro?” seria uma espécie de “modelo” para o desempenho desse papel, pois nesse livro não há uma oposição absoluta entre o eu e o outro: a experiência de Gabeira é apresentada como algo simultaneamente pessoal e coletivo.

O caráter modelar de “O Que È Isso, Companheiro?” exprimiria o modo como Gabeira encararia os movimentos libertários no momento em que redigiu o texto. O livro foi escrito ainda no exílio, durante os anos de 1978-79, época em que ele estaria defendendo a necessidade de uma composição entre todos os grupos dos movimentos libertários e as forças da esquerda para a formação de um “Front da Vida”. Na medida que o “Front da Vida” aglutinaria grupos sociais que reivindicam o reconhecimento de suas identidades específicas, o relacionamento entre os seus participantes não poderia ser o da subordinação hierárquica a um deles: nem o proletariado, nem qualquer grupo dos movimentos libertários poderia ser um grupo hegemônico. Cada grupo deveria manter sua identidade e ser capaz de reconhecer a identidade alheia e de estabelecer uma prática coletiva.

É o que, ao nível da sua identidade individual, Gabeira faria em “O Que È Isso, Companheiro?”, ele seria capaz de falar sobre si próprio e, ao mesmo tempo, ter acesso à experiência do outro, e incorporá-la, estabelecendo mediações entre sua prática singular e a dos demais que vivenciaram o mesmo período histórico: há a possibilidade do estabelecimento de um diálogo entre o “eu” e o “outro”, sem que isso implique numa anulação das diferenças. Tanto não haveria uma relação de oposição entre as práticas individuais de Gabeira e a dos demais que vivenciaram o período da luta armada, que a experiência do “outro” é incorporada ao próprio texto.

Portanto, enquanto texto memorialístico, “O Que È Isso, Companheiro?” acompanha a valorização da experiência individual e o tom confessional presente nas propostas libertárias, só que a experiência individual é situada historicamente e o tom confessional não exclui a intervenção da experiência do outro.

IV – O papel da autocrítica

O que permitiria em “O Que È Isso, Companheiro?” o estabelecimento de mediações entre o individuo e o período histórico e a construção de uma narrativa simultaneamente pessoal e coletiva, seria a existência de uma ruptura frente ao eu que vivenciou as experiências que se está narrando. Este eu é olhado de um ponto de vista que se situa fora dele, e que se situa, inclusive, fora do próprio período em que ele agia, pois o sentido que a narrativa transmite foi construído a posteriori.

“O Que È Isso, Companheiro?” seria um texto marcado por um estranhamento frente ao eu que age na narrativa, que é proporcionado pela autocrítica da luta armada. O eu que age na narrativa é transformado num “outro”, através de um processo de des-identificação, que busca compreender os motivos das suas práticas situando-as historicamente.

Nesse período de des-identificação, o recurso à ironia aparece como fundamental. Gabeira ironiza o passado desde o início do livro. Pois, após narrar o surgimento da idéia de escrever o livro, durante a fuga da polícia no Chile, ele passa a descrever uma passeata estudantil de 68, comparando-a com as manifestações da torcida do Guarani Futebol Clube de Juiz de Fora, time sempre derrotado pelo mesmo adversário, mas que segue cantando “em Juiz de Fora quem manda sou eu”.

A utilização da ironia se aproximaria de um auto-exorcismo. Gabeira estaria querendo exorcizar a sua identidade de militante guerrilheiro, o que explicaria a presença constante da ironia quando ele procurou situar historicamente o surgimento da proposta da luta armada. Assim é que as cisões ocorridas no Partido Comunista Brasileiro após o golpe de 64, e que foram fundamentais para a formação dos principais grupos guerrilheiros, foram descritas como “brigas de casal”.

Toda a descrição do processo de formação dos grupos guerrilheiros foi feita, já acompanhada pela visão autocrítica: por exemplo, ao narrar a frustração que tomou conta dos que pretendiam resistir ao Golpe de 64, e perceberam que não havia armas, Gabeira já adiciona os componentes autocríticos:

“De que adiantavam as armas se os principais partidos políticos não tinham tensionado suas forças para resistir? E de que adiantava os partidos fazerem isso, se a sociedade no seu conjunto não estava convencida de resistir?”