TEXTO INAUGURAL

Rua de São Bento

Não tenho navios de vela para mais naufrágios!
Faltam-me as forças! Falta-me o ar!
Mas qual! Não há sequer um porto morto!
“Can you dance the tarantella” – “Ach! ya”.
São as califórnias duma vida milionária
numa cidade arlequinal...
O Clube Comercial... A Padaria Espiritual...
Mas a desilusão dos sombrais amorosos
Põe “majoration temporaire”, 100% nt!...
Minha Loucura, acalma-te!
Veste o “water-proof” dos tambéns!
(Mário de Andrade)

A leitura da obra de Mário de Andrade nos permite dizer em primeiro lugar que o compromisso com a condição humana e a própria vida constituem-se nos fundamentos de sua poesia. Seu universo poético recria experiências psíquicas individuais, é marcado pela constante interação entre o sujeito e o objeto, entre a vida interior e a realidade exterior. É sempre o mundo – ou melhor – a vivência do poeta no mundo, que se projeta em sua poesia. O seguinte trecho do poema “Rua de São Bento” nos permite um exemplo para tal pressuposto:

Não tenho mais navios de vela para mais naufrágios!
Faltam-me as forças! Falta-me o ar!”

A tensão existente entre sujeito e objeto que caracteriza a representação do eu lírico na Paulicéia Desvairada se revela como uma atitude positiva diante do mundo das coisas. O homem está, queira ou não, inserido na realidade física e nela se realiza. Em vez de uma fuga assistimos, em Mário de Andrade, a uma apropriação da matéria pelo sujeito, a um tipo de “espiritualização” do empírico.
Fundamentados então na suposição acima descrita é possível observarmos que nos poemas cujo tema é a cidade (Rua de São Bento, por exemplo) ocorre um choque entre o sujeito lírico e a realidade que o circunda e que, para superar a natural barreira existencial entre o sujeito e o objeto, junto com a sensação da incompatibilidade do ser com seu ambiente pragmático e materialista, o artista assume a máscara arlequinal: Paulicéia Desvairada funde o poeta e a cidade, então, na figura do Arlequim, mediante o traje de retalhos metaforicamente apresentando São Paulo como um conjunto de “losangos”, no mapeamento de ruas e locais. A cidade, então, passa a ser descrita como uma polifonia saltitante e reveladora.


“Can you dance the tarantella?” – ach! Ja.”
São as califórnias duma vida milionária
numa cidade arlequinal...

Diante das proposições acima levantas, podemos concluir que, apesar de ser impossível dimensionar cada “retalho” do homem-espaço arlequinal, o autor de Paulicéia Desvairada procura por meio da sua obra restabelecer a proximidade com o mundo circundante, denunciando, caso necessário, o mundo de valores superados e restituindo a visão perceptiva dos outros mundos que a sua cidade contém.