Língua e meio ambiente - entendendo a poluição visual

1- O que é poluição visual?

Dá-se o nome de poluição visual ao excesso de elementos ligados à comunicação visual (como cartazes, anúncios, propagandas, banners, totens, placas, etc.) dispostos em ambientes urbanos, especialmente em centros comerciais e de serviços. Acredita-se que, além de promover o desconforto espacial e visual daqueles que transitam por estes locais, este excesso enfeia as cidades modernas, desvalorizando-as e tornando-as apenas um espaço de promoção do fetiche e das trocas comerciais capitalistas. Acredita-se que o problema, porém, não é a existência da propaganda, mas o seu descontrole. Caracterizam também a poluição visual, além dos elementos citados anteriormente, algumas atuações humanas sem estar necessariamente ligada à publicidade tais como o grafite, pichações, fios de eletricidade e telefônicos, as edificações com falta de manutenção, o lixo exposto não orgânico, e outros resíduos urbanos.

2- Quais são os seus malefícios?

Podemos considerar inicialmente que a poluição visual compromete a saúde da população. Assim como a poluição sonora, atmosférica, da água e dos alimentos, aquela produz graves males, tais como stress, fadiga, ansiedade e há na literatura médica até mesmo a hipótese de desencadeamento de depressão. Por outro lado – sob a ótica daquele que se utiliza da poluição visual – também há prejuízos que a utilização descontrolada de placas e outdoors anula a própria intenção da propaganda. Já há estudos apontando que quando o olho humano é submetido à descarga muito grande de informação ele acaba se treinando para não se fixar em nada, ignorando o teor das informações, fenômeno que a psicologia denomina de "saturação de estímulo". Dessa forma, o efeito pretendido pela propaganda acaba sendo o inverso. Finalmente, a poluição visual, além de contribuir para a perda da identidade das cidades, compromete a segurança dos cidadãos ao prejudicar a sinalização de trânsito e tirar a concentração de pedestres e motoristas, contribuindo para o aumento de acidentes de trânsito.

3- Estudo de alguns casos

a) Outdoor

Quando se discute a poluição visual logo nos vem à mente, os lixos espalhados pelas ruas, as faixas colocadas em locais estratégicos e destocados, os muros pichados, e muitas das vezes esquecemos-nos de outro tipo de poluição visual, que às vezes pode ser bem mais agravante, que são os outdoors espalhados por toda a cidade. Deve-se lembrar que a utilização de outdoors, além de causar agressões visuais e físicas ao meio ambiente de uma cidade, retira também os referenciais da arquitetura urbana, transgridem regras básicas de segurança, aniquilam as feições dos prédios, obstruindo aberturas de insolação e ventilação, deixa a população sem referencial de espaço, de estética, de paisagem e de harmonia, dificultando a absorção das informações úteis e necessárias para o deslocamento pelas vias da cidade.

b) Pichações

São assinaturas, declarações de amor ou ódio, rabiscos que estragam paisagens bonitas, prédios bem arquitetados e viadutos bem construídos. Os objetivos principais são desafiar limites e a ordem pública, além de sujar ainda mais as cidades e chocar os cidadãos. Têm-se observado em nossa cidade inúmeros imóveis particulares e públicos "pichados", Tais pichações produzem uma poluição visual que, além danificar economicamente os imóveis atingidos pela desconformidade estética, trazem conseqüências desastrosas à estética urbana, ao paisagismo urbano e ainda ao meio ambiente urbano. Juridicamente pichar por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano é crime ambiental nos termos do art. 65, da Lei 9.605/98, com pena de detenção de três meses a um ano, e multa. Se o ato for realizado em monumento ou imóvel tombado por seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena passa a ser de seis meses a um ano, e multa.

c) Homem-sanduíche

Trata-se de homens que andam pelos centros comerciais das grandes cidades, carregando, penduradas aos ombros, duas placas de compensado ou uma capa plástica, uma voltada para frente e outra às suas costas. Nesta placa estão estampados anúncios dos mais diversos produtos e serviços – compra e venda de ouro, tíquetes-refeição, materiais de sex shop, números de candidatos em período de eleições etc., trazendo uma tremenda confusão e desconforto para aqueles que circulam nas aglomerações. Em geral, são desempregados ou aposentados que procuram complementar sua renda usando o corpo como veículo de comunicação.

4- Que providências estão sendo tomadas?

Em São Paulo, o prefeito Gilberto Kassab adotou a “Lei Cidade Limpa” (em vigor desde janeiro de 2007), proibindo todo tipo de publicidade externa, bem como anúncios em táxis, ônibus e bicicletas. Com uma fiscalização composta por 800 profissionais e multas mínimas de R$ 10 mil, Kassab, apesar de ter enfrentado uma batalha judicial, conseguiu fazer uma verdadeira “faxina” visual. Já no Rio de Janeiro, um dos destinos brasileiros que mais atrai turistas do exterior, o prefeito Cesar Maia adotou uma política mais branda se comparada a do seu colega paulistano: a proibição se limita a uma parcela das vias do centro histórico da cidade. O decreto municipal veta a propaganda em outdoors, painéis e bancas de jornal na região que abrange as praças Mauá e Tiradentes, o Largo da Lapa e outras ruas do bairro. Os letreiros das lojas também terão regras a seguir. O decreto exclui da proibição apenas os anúncios afixados no mobiliário urbano, como pontos de ônibus e placas de rua. Ainda, o prefeito destaca ter escolhido o centro histórico porque a proibição é "comum nas grandes cidades, mesmo as mais liberais em matéria de publicidade, como Tóquio":

“-Adotamos o método da progressividade, começando por uma área que tende a ser consensual e mais fácil de ser fiscalizada, além de e servir de efeito de demonstração, antes e depois.”

PEÕES

(Marcos Alexandre)

Quando fecho meus olhos

Adentro em um orbe turvo

Formado por personagens

Predispostos a uma dinâmica estranha.


Caminhando pelo centro desta sociedade

Vejo seres míticos, horrendos e selvagens

Com suas cabeças sobrepostas a peças de xadrez

Deslizando conforme um interesse desconhecido.


Tal aquarela é chocante à minha alma:

Fujo, pois, a passos largos rumo à periferia

Ansioso por tocar em impressões extáticas

Nada encontro senão reproduções esquálidas de uma ordem.


Após a ingestão de uma bebida impregnada de fealdade

Abro os meus olhos e apalpo a concretude que me rodeia

Para mim qual grande é a surpresa

Tudo que vira nada mais é uma imagem do meu espelho.

Mitologia clássica: Afrodite

Propõe-se por meio do seguinte texto fazer um levantamento das características da deusa Afrodite, baseando-se em apontamentos feitos em aulas sobre mitologia romana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Em primeiro lugar, crê-se que seja necessário o conhecimento da etimologia do nome de Afrodite (Vênus). Nascida da espuma após o lançamento dos testículos de Urano no mar, seu nome vem do grego AFRÓS (justamente espuma), enquanto que Vênus vem do termo *WEN (desejar). Seu culto tem origem remota: desde o estabelecimento da cultura síria e palestina em que se faziam cultos à fertilidade e a deusa Astarté (correlata à deusa grega).

Podemos classificar Afrodite de dois modos, a saber:

· Afrodite Pandemia: Seria a deusa pertencente ao povo, amada pelo povo. Ela está relacionada ao amor carnal.

· Afrodite Urânia: Aquela que é filha de Urano, símbolo do amor sublime.

Afrodite tinha várias alcunhas, muitas vezes provenientes dos lugares em que era adorada, por exemplo: Citeréia (proveniente da ilha de Citera) e Cipres (Chipre).

Ainda temos os casos de amor de Afrodite com seres divinos e também com a humanidade. Afrodite, casada com o deus Hefestos, trai este com o deus da guerra, Ares. Destarte, podemos configurar o amor versus guerra. Dessa relação com Ares nasceram Fobos (medo), Deimos (terror) e a Harmonia. Hefestos, consciente da traição, arma uma teia mágica para pegar Ares e Afrodite em flagrante e consequentemente expô-los aos deuses do Olimpo. Além destes, Afrodite amou a Adonis, cuja história é oportuna para ser relatada neste momento.

Téias, rei da Síria, tinha uma filha chamada Mirra. Afrodite, vendo que ela era tão ou mais bela que a si própria, fez com que a filha deitasse com o pai dezoito noites. Após esse período, Téias queria matar Mirra e esta pediu proteção aos deuses que a transformaram em árvore e, após alguns meses, nasce Adonis, criado por Perséfone. O jovem cresce e tanto Afrodite como Perséfone se apaixonam por ele. Zeus define que Adonis ficaria um terço do tempo com Afrodite e um terço do tempo com Perséfone. Nesta proposição vem a idéia de que quando a vegetação está viva, Adonis está com Afrodite e quando está morta, com Perséfone. Adonis falece e Zeus o ressuscita para ficar com Afrodite.

Além desses casos, Afrodite relaciona-se com Hermes, nascendo Hermafrodito, indivíduo com dois sexos; com Zeus ou Dioniso, de quem nascerá Príapo, possuidor de um pênis gigantesco. Da sua relação com Anquises (mortal) nasce o herói Enéias, pai de Iullo. Enéias seria o ancestral dos romanos e Rômulo e Remo seriam descendentes de Iullo. O próprio Júlio César dizia que era descendente de Iullo. Em Roma, Vênus (Afrodite) será cultuada com três títulos:

· Vênus Felix: cultuado por Sila, ditador romano.

· Vênus Victrix: referenciada por Pompeu, estava relacionada à vitória.

· Vênus Genetrix: relacionada com a fundação do povo romano.

Suas festas eram chamadas de “Festas Afrodisíacas” e eram celebradas por toda a Grécia, especialmente em Atenas e Corinto. Suas sacerdotisas eram consideradas prostitutas sagradas, que representavam a própria Afrodite, e o sexo com elas era considerado um meio de adoração e contato com a Deusa. Com o passar do tempo, e com a substituição da religiosidade matriarcal pela patriarcal, Afrodite passou a ser vista cada vez mais como uma Deusa frívola e promíscua, como resultado de sua sexualidade liberal.

Reformas ortográficas da língua portuguesa (antes do novo acordo)

1- A relevância do presente trabalho

O presente trabalho surgiu da percepção que em toda a língua provida de escrita existe a tendência de se fixar um sistema rigoroso de grafia, ocorrendo, destarte, a ortografia (do grego orthos – “direito”, “reto” – e grafein – “escrever”). Apesar de tal intento, sabe-se que a língua falada está em constante transformação, o que faz com que os sistemas determinados pela sociedade não consigam acompanhá-la (RIBEIRO, 2002). A partir deste ponto surge então a necessidade de sucessivos tratados ortográficos, objeto de estudo do presente trabalho.

2- Os acordos ortográficos

2.1- O sistema simplificado português

As reformas ortográficas tiveram início a partir do momento em que o governo português nomeou uma comissão de lingüistas para a missão de elaborar um sistema dotado de unidade gráfica, utilizando como parâmetros para tal reforma os princípios que Gonçalves Viana tinha estabelecido na sua Ortografia Nacional, em 1904. Após a sua conclusão, foi o trabalho encaminhado para o chefe do Executivo português, que o tornou obrigatório em 1911 (COUTINHO, 1974, p. 78).

2.2- O sistema simplificado luso-brasileiro

No Brasil, a iniciativa de uma reforma ortográfica ganha contornos a partir de 1907, através de publicações oficiais da Academia Brasileira de Letras. Na sua aplicação, porém, houve diversas falhas para as quais foram propostos acréscimos e correções em seguidas sessões até a revogação das resoluções até então adotadas e a suspensão do estudo do assunto em 1919, persistindo, assim, a grafia do período pseudo-etimológico em nosso país (COUTINHO, 1974, p. 79).

2.3- Os Acordos Ortográficos entre Brasil e Portugal

O problema de reforma ortográfica volta a ser focado na década seguinte, até que, em 15 de junho de 1931, é assinado entre a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras um Acordo Ortográfico que o Governo Brasileiro torna obrigatório para todo o território nacional. Outros Acordos são celebrados em 1943 e 1945, sendo que Portugal opta pelo de 1945, enquanto que no Brasil vigora o de 1943, consignado no Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (P.V.O.L.P), sofrendo, no tocante à acentuação gráfica três alterações, de acordo com a Lei n° 5.765 de 18 de dezembro de 1971, onde foram abolidos o trema nos hiatos átonos, o acento diferencial de timbre e os acentos circunflexo e grave indicativos de sílaba subtônica. A criação de uma nova ortografia da língua portuguesa tem sido discutida nos últimos anos, em virtude das inúmeras discrepâncias existentes entre as ortografias do Brasil e de Portugal. Em maio de 1986, representantes de Portugal, Brasil e dos cinco países africanos lusófonos reuniram-se no Rio de Janeiro, estabelecendo o Acordo Gráfico de 1986, Acordo este inviabilizado posteriormente. Um outro Acordo, proposto em 12 de outubro de 1990, finalmente foi aprovado pelos países de língua portuguesa oficial. Este novo Acordo já teve a aprovação da Assembléia da República em Portugal e, no Brasil, o Decreto Legislativo n° 54 de 18 de abril de 1995 aprovou o texto assinado em 16 de dezembro de 1990, sendo o decreto publicado na Seção II do Diário do Congresso Nacional em 21 de Abril de 1995. O novo Acordo, apoiado em vinte e uma bases), ainda não entrou em vigor, não podendo assim ser aplicado.

Referências:
COUTINHO, I. Gramática histórica, 6ª. Ed., rev, Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1974.

RIBEIRO, M. Nova Gramática aplicada da língua portuguesa, 12ª. Ed., Rio de Janeiro: Metáfora Editora, 2002.

Análise do livro "O Que É Isso, Companheiro", de Fernando Gabeira.

I – Introdução

O texto memorialístico é o resultado de um confronto entre os acontecimentos vividos no passado pelo narrador e o ponto de vista sobre estes acontecimentos que ele possui no momento em que escreve seu relato.

“O Que È Isso, Companheiro?” é o primeiro livro de memórias de Gabeira, e foi escrito quando este se encontrava ainda exilado. Durante este período Gabeira teria adquirido uma postura crítica diante da esquerda, adotando uma posição bastante próxima da “postura libertária” que se desenvolvia no Brasil, no sentido de que também para ele as relações pessoais que marcam a vida cotidiana deviam ser consideradas políticas, bem como não se poderia aceitar um processo de transformação social que mantivesse a situação de opressão vivida por grupos sociais específicos como as mulheres, os negros e os homossexuais.

Como veremos mais adiante, a perspectiva que marca o momento em que Gabeira escrevia o texto era a da formação de um movimento que articulasse todos os grupos sociais que se consideram oprimidos pelo capitalismo. “O Que È Isso, Companheiro?” exprime o lado “utópico” presente nas propostas libertárias, pois é a possibilidade de uma mediação entre diferentes grupos sociais na formação de um movimento social igualitário o que constrói a narrativa, que se refere ao passado de Gabeira como militante político no Brasil.

“O Que È Isso, Companheiro?” começa com Gabeira no Chile, correndo da polícia após o golpe de estado de Pinochet. Foi ali que teria surgido a idéia de um dia escrever um livro, contanto as suas experiências. Gabeira localiza o começo da sua trajetória de militante em 1968, quando entrou em contato com o movimento estudantil, e aderiu à Dissidência Comunista da Guanabara – um “racha” do Partido Comunista Brasileiro, que posteriormente viria a se constituir no Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Mas, para explicar essa adesão, Gabeira passa a falar do golpe de 64, e da incapacidade do Governo Goulart em resistir aos militares.

Nesse recuo até o golpe, ele narra o início da repressão policial contra as forças de oposição, e o clima de discussão que se instalou na esquerda, com o surgimento de críticas ao “pacifismo” do PCB, que redundaram em cisões, e na adoção, pelos dissidentes, da luta armada como via para a “Revolução Brasileira”.

Em seguida, Gabeira mostra como foi se aproximando do movimento estudantil, que ressurgiu após o golpe: as passeatas se davam na Av. Rio Branco, onde ficava a sede do Jornal do Brasil, no qual trabalhava e de cuja sacada acompanhava as manifestações. A aproximação com os estudantes é descrita como o encontro que “revolucionou a minha vida”. Gabeira aponta as manifestações ocorridas em 1968 como sendo “o lugar onde tudo começou”.

A partir disso, narra a sua adesão ao MR-8, a decretação do AI-5, e o início das ações armadas por parte dos grupos de esquerda. Descrevendo, também, a sua participação no seqüestro do embaixador norte-americano, que o obrigou a entrar – por motivos de segurança – na clandestinidade: ficou trancado – na “geladeira” – por vários meses, em apartamentos que não podia sair, comunicando-se apenas com pessoas autorizadas pela organização. Findo o prazo que esta acreditava ser necessário que Gabeira ficasse escondido, ele se desloca para São Paulo, a fim de entrar em contato com militantes operários.

Em São Paulo Gabeira foi preso, atingido por uma bala no estômago, ao tentar escapar da polícia. O livro descreve o período em que esteve preso, as torturas que sofreu ou presenciou, as audiências nos tribunais militares, os deslocamentos de uma prisão para outra. Ele acaba no momento em que – trocado pelo embaixador alemão seqüestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária – Gabeira está viajando de avião rumo à Argélia.

II – As características da narrativa

De acordo com David Arrigucci, “O Que È Isso, Companheiro?” acompanha a tendência de produção ficcional dos anos 70, que se voltou para uma “representação mimética da realidade histórica que temos vivido”. “O Que È Isso, Companheiro?” seria caracterizado por uma busca ao sentido do que foi vivido no passado, e que se manifesta no próprio titulo do livro: O Que È Isso, Companheiro?

Nessa busca ao sentido, há uma reconstrução da experiência vivida por Gabeira como militante guerrilheiro, que ultrapassa a singularidade, adquirindo uma dimensão coletiva. Em “O Que È Isso, Companheiro?” há uma intenção realista que se combina com uma utilização de procedimentos realistas. Ao contrário do que acontece na “poesia marginal”, a experiência não é algo que dispense as mediações. Os diferentes momentos da narrativa são articulados pela autocrítica da luta armada, que fornece uma perspectiva que situa as práticas singulares do indivíduo Gabeira no interior do momento histórico mais abrangente. Se Gabeira trabalha com mediações, isso significa, também, que ele não construiu um texto alegórico: não se pretende fazer com que o singular represente – seja uma alegoria – o universal. É através do seu pertencimento a um grupo social particular – o dos militantes do MR-8 – que Gabeira vincula o singular ao universal, produzindo uma narrativa particularizadora.

“O Que È Isso, Companheiro?” poderia ser enquadrado na categoria lukacsiana do realismo crítico: um realismo não naturalista, que não se volta para uma reprodução “fotográfica” – puramente descritiva – do real, pretendendo reconstruí-lo através do estabelecimento de mediações entre os seus diferentes níveis: o singular, o particular e o universal. Desse modo, os seus componentes literários podem ser vistos como uma manifestação do “projeto” que seria inerente a um texto memorialístico, que apontaria a necessidade da realização de uma articulação entre a identidade individual e o momento histórico.

III – O caráter “modelar” da narrativa

É a sua experiência enquanto militante guerrilheiro nos anos 60 que Gabeira pretende transmitir em “O Que È Isso, Companheiro?”.

Ele acompanha as críticas feitas pelos adeptos dos “movimentos libertários” àqueles que pretendem falar sobre grupos sociais sem ter compartilhado de suas experiências. Gabeira fala de um grupo social do qual fez parte, e fala de sua experiência pessoal, e não em nome dos outros.

A crítica se dirige às correntes da esquerda, que não compartilhariam da experiência vividas pelos setores populares, embora pretendam “falar por eles”. É o que podemos perceber quando Gabeira descreve o que aconteceu em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em 1968, quando da manifestação de protesto pela morte – em confronto com a polícia – do estudante secundarista Edson Luís. Gabeira afirma que nessa manifestação podiam ser detectadas duas línguas diferentes:

“Completamente perdidos naquele enredo estavam as pessoas que viram a agitação na assembléia e se aproximavam para dar sua solidariedade. Muitas chegaram a fazer também o seu pequeno discurso e apresentavam sua perplexidade, inventariavam causas as mais diferentes, apontavam os caminhos os mais diversos. Se tivéssemos o poder de voltar atrás e recolher todos os discursos da época, talvez pudéssemos perceber ali que estavam sendo faladas duas línguas distintas. Uma, a dos partidos que sabiam o que fazer, que tinham sua tática e sua estratégia, e analisavam o episodio dentro da sua lógica mais geral. A outra das pessoas que iam passando, que não dispunham de nenhum programa global para salvar nenhum país, mas que se sentiam sufocadas por mil problemas cotidianos, pelo medo, pela pobreza; uma gente cheia de vida, capaz de subir nas escadas da Assembléia e dizer que assim não dava mais, que o preço dos aluguéis estava muito alto, que o custo de vida tinha de parar de subir”.

Se considerarmos esse trecho de “O Que È Isso, Companheiro?” sob o prisma da relação entre a experiência vivida e a produção dos significados, poderemos perceber que a esquerda falaria uma língua abstrata, alheia à experiência concreta, pois falaria do geral em se referir ao singular; enquanto os setores oprimidos falariam uma língua extremamente colada às suas experiências cotidianas, e que, portanto, seria uma língua presa à singularidade, marcada pela diversidade e pela perplexidade diante do geral: estaria configurada uma situação onde haveria “duas línguas se falando, nenhuma entendendo a outra”.

Gabeira estaria pretendendo desempenhar o papel de “tradutor simultâneo” das línguas diferentes faladas pelos setores oprimidos e pelas correntes de esquerda, através do estabelecimento de mediações entre as singularidades e o universal. A característica particularizadora da narrativa de “O Que È Isso, Companheiro?” seria uma espécie de “modelo” para o desempenho desse papel, pois nesse livro não há uma oposição absoluta entre o eu e o outro: a experiência de Gabeira é apresentada como algo simultaneamente pessoal e coletivo.

O caráter modelar de “O Que È Isso, Companheiro?” exprimiria o modo como Gabeira encararia os movimentos libertários no momento em que redigiu o texto. O livro foi escrito ainda no exílio, durante os anos de 1978-79, época em que ele estaria defendendo a necessidade de uma composição entre todos os grupos dos movimentos libertários e as forças da esquerda para a formação de um “Front da Vida”. Na medida que o “Front da Vida” aglutinaria grupos sociais que reivindicam o reconhecimento de suas identidades específicas, o relacionamento entre os seus participantes não poderia ser o da subordinação hierárquica a um deles: nem o proletariado, nem qualquer grupo dos movimentos libertários poderia ser um grupo hegemônico. Cada grupo deveria manter sua identidade e ser capaz de reconhecer a identidade alheia e de estabelecer uma prática coletiva.

É o que, ao nível da sua identidade individual, Gabeira faria em “O Que È Isso, Companheiro?”, ele seria capaz de falar sobre si próprio e, ao mesmo tempo, ter acesso à experiência do outro, e incorporá-la, estabelecendo mediações entre sua prática singular e a dos demais que vivenciaram o mesmo período histórico: há a possibilidade do estabelecimento de um diálogo entre o “eu” e o “outro”, sem que isso implique numa anulação das diferenças. Tanto não haveria uma relação de oposição entre as práticas individuais de Gabeira e a dos demais que vivenciaram o período da luta armada, que a experiência do “outro” é incorporada ao próprio texto.

Portanto, enquanto texto memorialístico, “O Que È Isso, Companheiro?” acompanha a valorização da experiência individual e o tom confessional presente nas propostas libertárias, só que a experiência individual é situada historicamente e o tom confessional não exclui a intervenção da experiência do outro.

IV – O papel da autocrítica

O que permitiria em “O Que È Isso, Companheiro?” o estabelecimento de mediações entre o individuo e o período histórico e a construção de uma narrativa simultaneamente pessoal e coletiva, seria a existência de uma ruptura frente ao eu que vivenciou as experiências que se está narrando. Este eu é olhado de um ponto de vista que se situa fora dele, e que se situa, inclusive, fora do próprio período em que ele agia, pois o sentido que a narrativa transmite foi construído a posteriori.

“O Que È Isso, Companheiro?” seria um texto marcado por um estranhamento frente ao eu que age na narrativa, que é proporcionado pela autocrítica da luta armada. O eu que age na narrativa é transformado num “outro”, através de um processo de des-identificação, que busca compreender os motivos das suas práticas situando-as historicamente.

Nesse período de des-identificação, o recurso à ironia aparece como fundamental. Gabeira ironiza o passado desde o início do livro. Pois, após narrar o surgimento da idéia de escrever o livro, durante a fuga da polícia no Chile, ele passa a descrever uma passeata estudantil de 68, comparando-a com as manifestações da torcida do Guarani Futebol Clube de Juiz de Fora, time sempre derrotado pelo mesmo adversário, mas que segue cantando “em Juiz de Fora quem manda sou eu”.

A utilização da ironia se aproximaria de um auto-exorcismo. Gabeira estaria querendo exorcizar a sua identidade de militante guerrilheiro, o que explicaria a presença constante da ironia quando ele procurou situar historicamente o surgimento da proposta da luta armada. Assim é que as cisões ocorridas no Partido Comunista Brasileiro após o golpe de 64, e que foram fundamentais para a formação dos principais grupos guerrilheiros, foram descritas como “brigas de casal”.

Toda a descrição do processo de formação dos grupos guerrilheiros foi feita, já acompanhada pela visão autocrítica: por exemplo, ao narrar a frustração que tomou conta dos que pretendiam resistir ao Golpe de 64, e perceberam que não havia armas, Gabeira já adiciona os componentes autocríticos:

“De que adiantavam as armas se os principais partidos políticos não tinham tensionado suas forças para resistir? E de que adiantava os partidos fazerem isso, se a sociedade no seu conjunto não estava convencida de resistir?”


A OBRA ARTÍSTICA DE CASTELAO E O COMPROMISSO COM A PÁTRIA GALEGA

1. Noções gerais sobre a arte da caricatura

Antes de chegarmos de forma efetiva ao estudo da obra artística de Castelao e do modo de como ela se relaciona com o nacionalismo galego, cumpre tecer algumas considerações que virão a enriquecer o nosso conhecimento da caricatura como instrumento de crítica política.
Termo de origem italiana (verbo caricare = carregar, colocar carga em), os antigos humoristas encontraram em caricatura a nomenclatura perfeita para a essência de um gênero que consistia no exagero de algum defeito e na busca do extravagante, sem, entretanto, usufruir as propostas normativas para conseguir o efeito desejado.
Bernardo Barros afirma a palavra caricatura como “um termo restritivo que abrange apenas o exercício do humorístico, este, por sua vez, se detém a observar os gestos, as atitudes e características pessoais, o que o faz ser diferente”. Este gênero é caracterizado pelo humor, pela sátira e pela paródia: o caricaturista permanece com os sentidos abertos para expressar o cotidiano de uma história de personagens que transcendem o social. Apesar de sua simplicidade, este meio de expressão permite transmitir uma rica fonte de simbologias sociais e culturais.
Por que a caricatura tem íntima relação com o tratamento das questões políticas? Na expectativa de esclarecimento desta questão, Oscar Muñoz afirma que o profissional da caricatura, após a análise dos personagens, procura fundamentalmente dialogar com as massas populares sobre as mazelas sociais ignoradas pelas autoridades. Este trabalho é realizado por meio de uma estética que impõe ao artista o dever de sintetizar as linhas empregadas na sua obra, além uma técnica cuja natureza revela-se bastante sensível.
Em um sentido geral, a caricatura caracteriza-se na deformação, uma vez que rompe com as regras do bom uso do desenho advogado pelas escolas artísticas tradicionais; tal pressuposto, porém, não evita outros caminhos para a expressão e a criatividade. Carlos Sojo aponta para uma sistematização deste tipo de arte conforme as suas finalidades e o meio técnico empregado e, fundamentado nesta proposta, estabelece diferenças entre as caricaturas política, habitual e de ilustração, cujos conceitos principais são os seguintes:
• Caricatura política: Sojo afirma que, em sua essência, trata-se de uma forma de aguilhoar e de tornar cômica a pomposidade de personagens e, ainda, revela-se como uma irreverente forma de expressão capaz de zombar pessoas de papel relevante no cenário político e social. Este tipo de manifestação tem seu lugar na sociedade desde os seus primórdios, haja vista a sua utilização contra o poderio de deuses gregos e egípcios e daqueles que encarnavam as suas prerrogativas, por exemplo. No que se refere à contemporaneidade, Sojo afirma existir duas correntes dentro da caricatura política: as chamadas caricaturas “tremendas”, que tem por característica uma denúncia firme e sem concessões e as caricaturas “palaciegas”, com propriedades sinuosas e espírito cortês.
• Caricatura habitual: é aquela que reflete a vida cotidiana: costumes, ofícios, defeitos e valores da mesma. Este tipo de caricatura seleciona as expressões próprias de um grupo social: destarte, são representadas cenas de vendedores, postos de venda, incidentes ocorrentes nas ruas, entre outros.
• Caricatura de ilustração: Neste caso, ao invés de estar inserido em um cartoon, se usa a caricatura como complemento de um texto informativo, comentando ou condenado as situações expressas no mesmo.

2. O estilo de Castelao

No que se refere à caricatura na Galícia, pode-se considerar Alfonso Castelao como a principal figura desta manifestação artística devido à qualidade, magnitude e repercussão de sua obra, além da influência que é estendida aos humoristas gráficos posteriores, servindo a estes como referencial para a realização de seus desenhos.
A obra artística de Alfonso Castelao tem por características fundamentais a condensação textual, a ilustração concebida a partir de umas linhas esquemáticas suficientemente caracterizadoras do personagem, a ausência de cor (que parece aumentar o drama das cenas representadas) e a presença do lirismo e da ternura. Esta última característica é a que mexe com o espectador que contempla a ilustração, provocando nele um ligeiro sorriso, nunca, porém, uma manifestação mais extrovertida, porque o contexto e as situações representadas incitam, na maioria dos casos, a compaixão pelos personagens representados. Neste sentido podemos considerar que Castelao reproduz a idéia de Mark Twain de que debaixo do humorismo há sempre um grande sentimento e por isso é necessário abordar o humor com uma profunda ternura para o ser humano que o protagoniza.

3. A representação do espaço social e cultural na obra de Castelao

Pode-se observar a partir da análise da obra de Castelao a capacidade de codificação de diversos fundamentos em que se constrói o imaginário de uma sociedade, revelando, deste modo, um grau extraordinário de conhecimento da psicologia do povo galego. Entretanto, a sua genialidade não encontra suas fronteiras finais neste ponto. Castelao é, antes de tudo, um pedagogo que faz a sua grandiosa obra se tornar de fácil leitura para o cidadão galego o qual, ao identificar-se naquelas linhas, resgata o orgulho pela sua pátria. Partindo então deste pressuposto identificaremos alguns pontos que estão ligados a Galícia de Castelao e fizeram do mesmo um clássico da cultura galega e também do galeguismo:
• Os espaços: Primeiramente, a Galícia aparece principalmente como uma área rural. São freqüentes os espaços campesinos, todavia aparecem também parques ou jardins em que falam personagens burgueses, apesar de aparecerem majoritariamente vinculados a espaços mais fechados, como, por exemplo, casas, cafés, cassinos etc. São poucas as paisagens de litoral e zonas portuárias e menor ainda as representações de espaços citadinos, embora algumas ilustrações mostram algumas ruas ou mercados e a obsessão de Castelao pela estátua de Montero Ríos na praça do Obradoiro.
• Os personagens: A figura mais freqüente consiste na temática de velhos conversando entre si, comentando ou se queixando de algo. Poucas vezes estes e outros personagens são representados atuando de outra forma: o que se mostra mais relevante é a capacidade deles de se expressar em palavras, poucas e deselegantes, mas de grande competência comunicativa.
Junto àqueles personagens, estão as crianças e as mulheres. No que se refere aos primeiros, estes são apresentados como integrantes das classes populares, já as mulheres têm os seus discursos pautados em temas como o casamento, a discriminação e as desigualdades (de idade, classe e língua, por exemplo). Finalmente, completa o panorama de personagens humanos um grupo sobre o qual Castelao lançará todo o seu discurso colérico: os burgueses e os caciques.
Outras figuras que são utilizadas por Castelao na sua obra são os animais, na tentativa de retomar uma tradição de fábulas e contos de caráter moral, clássicos na cultura galega. São dois os grupos que predominam: o primeiro constituído por gatos, ratos e cachorros enquanto que no outro grupo aparecem sapos, porcos, vacas, macacos, galos, papagaios e lobos. Estes animais aparecem dialogando entre si ou fazendo comentários sobre os seres humanos.
• Traços pertinentes aos personagens: A imagem da Galícia também se constrói pelos objetos que diferenciam os personagens. Um aspecto que chamaremos a atenção em primeiro lugar são os adornos de cabeça que aparecem nas ilustrações: Castelao, de forma engenhosa, utiliza-os na formação de signos que caracterizam as diferenças sociais.
Tal pressuposto é observado quando se contemplam as estampas representativas das classes formadas por personagens de cunho popular. Observamos, por exemplo, neste segmento social, o chapéu de abas largas entre os homens, enquanto que as crianças aparecem com boinas e as mulheres com panos enrolados na cabeça. O restante da indumentária se completa com os homens portando guarda-chuvas, enquanto que as crianças estão vestidas com remendos e trapos e, por fim, as mulheres em alguns casos aparecem portando cestas. O mais freqüente é que estejam calçados, porém um signo de maior indigência é o fato de se apresentarem descalços.
Os adornos de cabeça também se tornam signos quando acompanham as elites da sociedade, porém um tópico interessante é que em diversas ocasiões os burgueses não cobrem as suas cabeças, deixando transparecer a sua calvície ou penteados (sobretudo as mulheres). Os homens aparecem vestindo terno e portando relógio de bolso e, caso fumem, o gosto predominante é por charutos. As mulheres se apresentam com belos vestidos e penteados realizados em cabeleireiros.
• Temática: A temática abordada nas ilustrações de Castelao reflete fundamentalmente a vida pública da Espanha no início dos anos vinte. Existem alguns casos em que os temas são de difícil interpretação, pois fazem referência a acontecimentos ou personagens relativos àqueles anos; no entanto, pode-se perceber pelo menos três eixos temáticos diferenciados:
a) O âmbito da vida cotidiana, no qual aparece o trabalho, a miséria, a dificuldade para pagar os impostos, os casamentos, a emigração;
b) O sistema de dominação política, no qual aparecem com bastante freqüência as eleições, o valor dos votos, o papel e a função dos caciques, a distância dos políticos ante aos problemas da vida cotidiana, os problemas criados pelas leis e que afetam a população dominada;
c) A repreensão na época da ditadura de Primo de Rivera, período em que surgem prisões, torturas, denúncias e censura sobre as ideologias e as liberdades dos cidadãos.

4. A dialética das línguas faladas na Galícia na obra artística de Alfonso Castelao

Dentro do numeroso grupo de ilustrações de Castelao, um ponto a ser observado e que revela o compromisso do artista com a Galícia é o contato lingüístico entre o galego e o castelhano, contato este que dá origem à seguinte classificação:
• Desenhos que apresentam a nota de rodapé escrito em língua galega;
• Desenhos que apresentam a nota de rodapé escrito em língua castelhana;
• Desenhos que apresentam a nota de rodapé parte escrita em língua castelhana e parte em língua galega.
Neste último caso, a escolha de Castelao já reflete a realidade do contato de línguas. Em qualquer dos três casos, a perspectiva do artista é evidente: o fenômeno de contato entre o castelhano e o galego que se aprecia na Galícia é o de diglossia (caso em que há variantes lingüísticas hierarquizadas) e não de bilingüismo. Castelao mostra em suas ilustrações como o uso de um ou outro idioma supõe a diferença de classe, de nível cultural e de comportamento dos personagens. A identificação lingüística realizada por Castelao é a seguinte: falam galego os personagens que são caracterizados positivamente como, por exemplo, o lavrador pobre e honrado (símbolo da Galícia rural), enquanto que o castelhano é falado pelos caciques e as altas classes sociais que não mantêm nenhuma relação afetiva com o território galego, ou seja, personagens marcados negativamente pelo artista. Assim, através da aplicação das avaliações citadas anteriormente, Castelao inverte a situação de valorização do uso daquelas duas línguas ao fazer um uso maniqueísta das mesmas em sua obra: os personagens galegos são simpáticos e possuidores de bondade, enquanto que os que falam castelhano são desagradáveis e moralmente censuráveis por sua conduta.


     Caricatura de Castelao

TEXTO INAUGURAL

Rua de São Bento

Não tenho navios de vela para mais naufrágios!
Faltam-me as forças! Falta-me o ar!
Mas qual! Não há sequer um porto morto!
“Can you dance the tarantella” – “Ach! ya”.
São as califórnias duma vida milionária
numa cidade arlequinal...
O Clube Comercial... A Padaria Espiritual...
Mas a desilusão dos sombrais amorosos
Põe “majoration temporaire”, 100% nt!...
Minha Loucura, acalma-te!
Veste o “water-proof” dos tambéns!
(Mário de Andrade)

A leitura da obra de Mário de Andrade nos permite dizer em primeiro lugar que o compromisso com a condição humana e a própria vida constituem-se nos fundamentos de sua poesia. Seu universo poético recria experiências psíquicas individuais, é marcado pela constante interação entre o sujeito e o objeto, entre a vida interior e a realidade exterior. É sempre o mundo – ou melhor – a vivência do poeta no mundo, que se projeta em sua poesia. O seguinte trecho do poema “Rua de São Bento” nos permite um exemplo para tal pressuposto:

Não tenho mais navios de vela para mais naufrágios!
Faltam-me as forças! Falta-me o ar!”

A tensão existente entre sujeito e objeto que caracteriza a representação do eu lírico na Paulicéia Desvairada se revela como uma atitude positiva diante do mundo das coisas. O homem está, queira ou não, inserido na realidade física e nela se realiza. Em vez de uma fuga assistimos, em Mário de Andrade, a uma apropriação da matéria pelo sujeito, a um tipo de “espiritualização” do empírico.
Fundamentados então na suposição acima descrita é possível observarmos que nos poemas cujo tema é a cidade (Rua de São Bento, por exemplo) ocorre um choque entre o sujeito lírico e a realidade que o circunda e que, para superar a natural barreira existencial entre o sujeito e o objeto, junto com a sensação da incompatibilidade do ser com seu ambiente pragmático e materialista, o artista assume a máscara arlequinal: Paulicéia Desvairada funde o poeta e a cidade, então, na figura do Arlequim, mediante o traje de retalhos metaforicamente apresentando São Paulo como um conjunto de “losangos”, no mapeamento de ruas e locais. A cidade, então, passa a ser descrita como uma polifonia saltitante e reveladora.


“Can you dance the tarantella?” – ach! Ja.”
São as califórnias duma vida milionária
numa cidade arlequinal...

Diante das proposições acima levantas, podemos concluir que, apesar de ser impossível dimensionar cada “retalho” do homem-espaço arlequinal, o autor de Paulicéia Desvairada procura por meio da sua obra restabelecer a proximidade com o mundo circundante, denunciando, caso necessário, o mundo de valores superados e restituindo a visão perceptiva dos outros mundos que a sua cidade contém.